É relacionamento abusivo quando…

Surgiu, já tem algum tempo (mas eu não consegui escrever antes por uma série de motivos), uma hashtag no Twitter (e logo passou para o Facebook, como sempre acontece) que me chamou bastante a atenção. Ela foi criada para chamar a atenção para os relacionamentos abusivos e suas nuances, porque nem sempre um relacionamento abusivo vai ser óbvio, vai ser físico em sua violência. Ele começa na violência psicológica e pode ou não passar para a violência física. Ambos são danosos, em graus e de jeitos diferentes, e difíceis de abandonar por causa da dinâmica em que funcionam. A vítima, mesmo quando percebe que está em um relacionamento abusivo, não consegue deixar seu abusador por ser dependente dele, seja de forma psicológica, financeira, emocional, o que for.

A hashtag em questão, que me levou a escrever esse texto, foi a “é relacionamento abusivo quando”, mas ela não é a única. Houve também a circulação, com o mesmo propósito, da hashtag “ele não te bate”. Uma pesquisa rápida no Facebook por qualquer uma dessas hashtags logo gera vários e vários resultados. E, dessa vez, eu decidi escrever a respeito não apenas para informar as pessoas sobre esse assunto, mas porque para mim é algo extremamente pessoal. Estar aqui, agora, escrevendo esse texto me é revisitar antigas feridas, nem todas cicatrizadas ainda, e cutucá-las, abri-las. É me expor de tal maneira que, ao fim, me sobrará recolher as peças que ficarem.

Mas eu já as recolhi uma vez e sei que posso recolher de novo. O processo não é mais fácil a cada vez que você o repete. Não. Você que fica mais forte a cada vez que encara esse demônio que é o relacionamento abusivo e o derrota. Aos pouquinhos, no seu próprio ritmo, dando tempo para seu corpo e mente se restaurarem após cada batalha. A cada nova coisa que você identifica em um relacionamento, presente ou passado, que indica abuso, você precisa decidir o que fazer. Porque aquilo vai te afetar. Não vou mentir. Todas as marcas que carrego comigo ainda me afetam. Mas eu posso escolher deixar que elas me afundem ou não.

Há um “porém” nessa história. Você só consegue tomar essa decisão quando tem consciência de que o relacionamento que você vive ou viveu pode ser abusivo. Você só consegue tomar essa decisão quando sabe o que caracteriza um relacionamento abusivo. Claro, cada relacionamento é diferente do outro e há certas coisas que podem nunca acontecer com você. Mas existem coisas, sinais, que são frequentes. Mesmo que você ainda não tenha forças para enfrentar a dor de um relacionamento abusivo, o importante é que você saiba reconhecer que aquilo te faz mal e procurar pessoas que realmente se importam com você para te ajudarem. Porque, acredite, é muito difícil sair de um relacionamento assim sozinha, sem ninguém para segurar a sua mão e dizer que você está fazendo a coisa certa.

Acredite, se não houver ninguém para te puxar para fora desse ciclo, seu abusador vai apenas te puxar mais e mais para dentro, para fundo, te fazendo acreditar que terminar o relacionamento é errado e egoísta. Ele vai usar de todas as táticas que tiver para fazer com que você mude de ideia. Para te fazer ficar. Porque é nisso que ele sente prazer. É isso que ele quer. Uma vítima fraca e indefesa, dependente dele e isolada do mundo, sem mais ninguém para ajudar. Alguém para ser dele e só dele.

Mas, afinal, o que caracteriza um relacionamento abusivo? Bom, é um relacionamento abusivo quando (preparem-se para a lista, completamente baseada em fatos reais, em experiências pessoais, em experiências contadas quando as hashtags surgiram):

… Ele só fala com você quando acha que você merece (o famoso “tratamento de silêncio” ou “tratamento silencioso”);

… Ele não quer saber como você está ou como foi seu dia, porque as únicas vitórias, frustrações ou o que for, que importam são as dele;

… Ele acha que seu mau humor só pode ser explicado por TPM. Se não for isso, você precisa ver bem o tom que usa com ele, porque ele não vai aturar tamanho “desaforo”;

… Ele repete aquela piada que te incomodou o dia todo até te deixar completamente constrangida. Se for relacionada ao seu corpo, você vai terminar completamente consciente de cada defeito, por menor que seja;

… Ele não suporta a ideia de você ter amigos homens. Abraçá-los, então, esqueça!

… Ele exige ver o seu telefone para saber com quem você está falando quando estão juntos. Afinal, ele está com você, quem mais poderia importar?

… Ele não respeita o seu tempo para se sentir à vontade para fazer certas coisas, incluindo (mas não limitado a) as de cunho sexual;

… Ele vai diminuindo sua autoestima lentamente até você se sentir a pior pessoa do mundo;

… Ele acha que você deveria agradecer por ele não te bater;

… Ele, de tanto te colocar defeitos, faz você acreditar que os tem e que não é capaz de viver algo melhor na vida;

… Ele te lembra todo dia que a casa é dele, o dinheiro é dele, a família é dele e que você não tem e nunca será nada na vida sem ele (quando vocês moram juntos ou você vai visitá-lo, especialmente se você for para a casa dele mais do que ele vai a sua);

… Ele repete todo dia que só ele no mundo te ama de verdade e que os outros homens só te veem como objeto sexual, que você só terá amor de verdade com ele;

… Ele vasculha sua bolsa e celular, só depois te dá boa noite, pois precisa verificar se você “se comportou” na rua;

… Ele escolhe suas roupas e regula suas amizades;

… Ele diz coisas como ” você não chegará a lugar nenhum pois é burra, nem terminou a faculdade”, ” eu estou com você porque foi conveniente, mas não há nenhum motivo especial, pois você nem é gata demais e nem mesmo rica”, ” eu teria qualquer mulher mais bonita que você se eu quisesse”;

… Ele critica as coisas de que você gosta ou que tem vontade de fazer, como se só aquilo que ele aprova fosse bom o bastante (não para você, mas para ele, que está acompanhado de você);

… Ele reclama que você não se esforça o bastante no relacionamento e que ele faz tudo pelos dois (quando você sente que está se matando para fazer tudo dar certo);

… Ele vem cheio de dengo quando você fica brava com algo que ele fez para te acalmar, mas não se importa com suas tentativas de remediar a situação quando os papeis se invertem;

… Ele concorda que talvez precise de ajuda psicológica, mas, quando não ouve exatamente o que quer do psicólogo, diz que a pessoa que não sabe o que faz e que a culpa não é dele, porque ele tentou (e você que tem que aguentar tudo, o que pode incluir um sermão sobre como foi uma péssima ideia a sua de sugerir que ele fosse atrás de ajuda profissional para começo de conversa);

… Ele chora dizendo que te ama e que quer te dar uma vida melhor, mas não aceita um único emprego que não seja digno o bastante dele nem aceita que você trabalhe com o que ele não achar digno o bastante;

… Ele diz que não se incomoda se você ganhar um salário maior que ele, mas torce o nariz toda vez que você diz que tem dinheiro para algo que ele não pode pagar (sem que ele tenha “pedido” que você pagasse);

… Ele julga seus amigos quando vocês estão sozinhos, mas se faz de santo na presença dos outros. Porque aí, quando você se afastar de todos os outros, a culpa “não vai ser dele” (mesmo que ele tenha enfiado todas as minhocas na sua cabeça);

… Ele, sempre que fala da ex-namorada, usa termos como “louca” ou “descontrolada” e se recusa a te deixar falar com ela (especialmente quando você não tem outra forma de conseguir contatar a pessoa);

… Ele fica comparando experiências sexuais passadas com a que tem com você como uma forma de dizer que você “não é boa o bastante, mas ele te ama mesmo assim”;

… Ele só transa com você quando ele quer (o que, em geral, exclui todos os dias em que você está menstruada, porque “eca, sangue”) e, se você não estiver com vontade (ou precisar de um pouco mais de estímulo do que ele estiver com vontade de dar), tem alguma coisa de errada com você;

… Ele exige (muitas vezes indiretamente) que você raspe todos os pelos, especialmente pubianos, provavelmente com algum argumento simplório dito de forma convincente. E não se importa de fato se isso te incomoda ou não;

… Ele quer saber o que você está fazendo o tempo todo, a toda hora do dia, e reclama se você não responde na hora, já vindo com mil questionamentos (e você normalmente se sente como se estivesse sendo interrogada pela polícia como suspeita de um crime);

… Ele zomba de todo pequeno erro que você comete, mas não suporta que você diga (mesmo com o tom mais considerativo de todos) quando e onde ele errou;

… Ele fica insinuando o tempo todo que aquele cara (mesmo que seja um professor super gente fina, alegre no casamento e com dois filhos) com certeza está dando em cima de você. Mesmo dizendo em tom de brincadeira, ele dá um jeito de te deixar desconfortável com a situação, que é para ter certeza de que você entendeu a mensagem (“o homem da sua vida sou eu” e similares);

… Ele não suporta se você falar de outros homens (mesmo que a sua relação com eles seja meramente profissional), especialmente várias vezes seguidas, mesmo que você esteja desenvolvendo um projeto a semana toda com aquele cara em específico (em geral, você acaba falando em resposta a perguntas como “fez o que hoje?”, “como foi seu dia?”, “como foi o trabalho?” e similares).

A lista pode continuar indefinidamente. O resumo básico é que ele vai dar um jeito de diminuir sua autoestima e seu amor próprio, ele vai tentar (muitas vezes conseguir) te afastar de parentes e amigos, vai fazer com que você duvide de seus conhecimentos e capacidades (mesmo que você saiba do que está falando e não se sinta tão insegura de discutir o assunto com outras pessoas como se sente quando está discutindo com ele). Ele vai fazer com que seu mundo se resuma a ele. Que as vontades dele sejam as suas. Que você faça toda e qualquer coisa no dia pensando nele, de um jeito ou de outro.

Amiga, se você suspeitar que pode estar em um relacionamento abusivo, procure alguém de sua confiança e converse. Mas, conselho baseado em experiência própria, não fale apenas com uma pessoa, especialmente se ela já tiver certo histórico de puxar a sardinha para o lado do cara. Fale com duas, três. Conte o que você está passando, o que você acha que pode ser marca de relacionamento abusivo. Muitas vezes alguém de fora consegue ver mais facilmente o que se passa, especialmente se você expõe o relacionamento. Não o deixe te fazer acreditar que você é louca, que ninguém mais vai te amar.

Você não está, muito menos é, louca. E um amor como esse ninguém merece. Acredite, você vai achar quem te ame. Mais do que isso, amores românticos nem sempre são aquilo que almejamos na vida (apesar de sermos socialmente construídos para acreditar que, sem isso, somos incompletos). A sua felicidade mora dentro de você. Algumas pessoas te ajudam a encontrar esse jardim lindo escondido aí no meio e a regá-lo para que as flores cresçam bonitas e vistosas. Algumas pessoas, por outro lado, tampam a luz, cortam as flores, tentam fazer seu jardim sumir. Porque, se você não tiver o seu, você vai querer ficar com eles para poder desfrutar da beleza (muitas vezes superestimada) do jardim deles.

Toda força a nós, guerreiras nessa sociedade que nos cerca e nos ataca desde que nascemos. Toda força a nós, sobreviventes de relacionamentos abusivos. No mundo ideal, ninguém passaria por esse tipo de experiência. Mas o mundo não é ideal e muitas de nós passamos (presente e passado) ou vamos passar por isso. Toda força a nós, que, juntas, conseguiremos nos ajudar cada vez mais.

Toda força a nós, mulheres.

Kissu,

Kuma

P.S.: para quem quiser algumas leituras a mais, jogue no Google “dinâmica de relacionamentos abusivos”, por exemplo. Veja quantos resultados aparecem. Essas coisas nunca são casos isolados. Só querem nos fazer acreditar que sim.

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Sobre Rikuki

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